O número de pessoas vistas dormindo nas ruas de
Londres cresceu em um ano. A notícia saiu publicada na revista “The
Economist” da semana passada, e vem com números com aquele preciosismo
que só os britânicos conseguem ter: há um ano havia 3.017 mendigos
londrinos, contra 6.437 deste ano. Uma diferença na forma de contar
essas pessoas pode ser a explicação para o aumento, alerta o texto, já
que uma rede social local decidiu acrescentar ao número de indigentes
aqueles que tinham a intenção de dormir na rua, não apenas os que já
foram encontrados acomodados nas calçadas.
Seja como for, estamos falando de pobreza num país que ocupou o 26º
lugar no relatório do Pnud (Programa das Nações Unidas de
Desenvolvimento) deste ano.
Nesta semana, a mesma “The Economist” publicou outra reportagem sobre
o assunto pobreza, desta vez focando os subúrbios dos Estados Unidos.
Não é difícil puxar da lembrança alguma imagem desses locais
frequentemente retratados em filmes como o paraíso na Terra. Ruas
limpas, casas com gramas verdinhas, sem muros, crianças brincando
felizes e poucos carros. Pelo que se viu nas estatísticas, no entanto,
isso mudou.
Durante a bolha do mercado imobiliário, diz a reportagem, muitas
pessoas com má pontuação de crédito mudaram-se para os subúrbios. Os
imigrantes, perseguindo o sonho americano de casas sem cercas, também
foram parar lá. Fato é que, segundo o livro “Confronting Suburban
Poverty in America”, de Elizabeth Kneebone e Alan Berube , entre 2000 e
2010, o número de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza nos
subúrbios dos Estados Unidos cresceu 53%, enquanto nas cidades há mais
23% de pobres.
Se em lugar nenhum ser pobre é bom, segundo a reportagem, lá também
não é. Algumas pessoas foram entrevistadas, dando conta de privações
como falta de transporte público eficiente (aquele trem bonito que se vê
no seriado “Mad Men” parece estar mesmo só na ficção) e falta de
solidariedade entre a vizinhança. Afinal, a vizinhança não está
acostumada a lidar com a pobreza.
Estimulada pela divulgação do “Atlas do Desenvolvimento Humano no
Brasil”, que mostrou que os municípios do Norte e Nordeste, que no fim
do século passado eram nossos “eternos bolsões de pobreza” tiveram a
maior evolução de renda, decidi procurar quem me ajudasse a entender a
face da pobreza nesse mundo em desenvolvimento. Afinal, desde que fiz
uma entrevista com o economista indiano e Prêmio Nobel Amartya Sen, o
criador do IDH (publicada em maio de 2012 na revista Razão Social), em
que ele próprio confidenciou que julga agora o índice como algo
incompleto “uma forma bruta de representar qualquer coisa” , fico sempre
com um pé atrás com estatísticas sobre pobreza.
Seria pretensão demais, é claro, desvendar os multidiversos pontos
que se abrem quando a gente começa a ler sobre o tema. Mas sempre é bom
trazer novos autores à discussão.
Majid Rahnema foi representante do Pnud (Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento) em Mali, na África, lecionou na Universidade da
Califórnia, e agora vive na França, onde prepara o livro “The
Alternative Development Reader” que deve ser lançado pela Zed Books. No
artigo “Pobreza”, um dos que compõem a segunda edição do livro “The
Development Dictionary”, organizado por Wolfgang Sachs, ele passeia pela
história da pobreza, lembrando que foi em 1948 que o Banco Mundial, num
de seus relatórios, correlacionou o problema da penúria global com o
PIB.
“Ele (o Banco Mundial) postulou que os países com uma renda
per capita média menor do que cem dólares são, por definição, pobres e
subdesenvolvidos. E expressou também a responsabilidade das nações
ricas, a maior delas sendo os Estados Unidos, de ajudar os países pobres
a crescerem e alcançarem seu padrão de vida”, diz Rahnema.
Foi a partir daí que, na opinião do autor, a noção de riqueza passou a
ser a mesma para todos, independentemente da cultura ou do tamanho das
regiões. “A era industrial colapsou a cultura das sociedades”. Criou-se
um conjunto de referências universais e os pobres passaram a se julgar
assim por não terem aquilo que os ricos têm. Não entraram aí nenhuma
preocupação com a questão da overdose de consumo, nem da escalada
violenta contra os recursos naturais. E os programas sociais organizados
para livrar os pobres da condição de pobreza, quer sejam do governo ou
de corporações e associações, tiveram como meta o emprego, a geração de
renda e o acesso aos serviços públicos. Assim, padronizados.
“E a pobreza econômica era agora vista, em escala global, como uma
vergonha ou um flagelo”, diz o autor. “Os programas de alívio da pobreza
afirmam ser baseados num conjunto de necessidades humanas”.
Quais são essas necessidades? Amartya Sen tem, agora, essa dúvida. A
ideia de criar um índice que especificasse as necessidades surgiu em
1989, numa conversa com o também economista indiano Mahbub ul Haq, onde
os dois se sentiam incomodados com o PIB, que só olha para a questão de
renda, sem criar a noção necessária de desenvolvimento que se quer.
“Se eu lhe perguntar como está sua vida, você vai me dizer 137? Não.
Então resolvemos criar este índice que inclui mais variáveis e ficamos
com a longevidade, educação e renda per capita. Mas eu hoje poderia
incluir pelo menos outros dez fatores.”, disse Amartya Sen, antes de
concluir: “Os índices são só analogias. Um índice é antipensamento,
antipoesia. Não podemos nos concentrar tanto neles. Há liberdades muito
importantes que não estão nos índices, por exemplo”.
Descontruída a medição da riqueza, o conceito de pobreza também pode
ser revisitado? “Na Europa, em várias eras, os pobres eram pessoas
consideradas com respeito porque tinham apenas perdido, ou ficado na
iminência da perda, a sua âncora. Em muitas culturas, o pobre não era
sempre considerado o oposto do rico”, diz Rahnema. Diferente da
miséria, que tira do indivíduo a potência, a pobreza não.
Termino a reflexão sem conclusão, é claro. Melhor: conto a história
de João (nome fictício), dono de um pequeno restaurante na Feira de
Caruaru, de origem familiar pobre, com pouco estudo, que seguiu a rota
da maioria de seu povo, na década de 80, quando foi buscar trabalho em
São Paulo. Nunca conseguiu ocupação formalmente qualificada, mas fez
muitos bicos. Até que se cansou, voltou para casa e, com insistência e
trabalho duro, conseguiu se tornar o que o sistema econômico atual chama
de empreendedor, ou seja, alguém que dá duro e ganha pouco, mas sai da
miséria. E virou um número positivo no Atlas do Desenvolvimento Humano
brasileiro.
A história de João e de outros tantos batalhadores tenho lido no
excelente livro de Jessé Souza, já falei sobre ele aqui, “Os
batalhadores brasileiros – Nova classe média ou nova classe
trabalhadora?”